Histórias e afetos: trabalho feito por aluna da UnB aborda as perdas para covid

Universitária transforma a morte do pai para a doença em tema de trabalho de conclusão de curso (TCC), encontrando aí a força para terminar a faculdade de jornalismo

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Beatriz Leal, estudante de jornalismo da Universidade de Brasília (UnB), transformou a dor de perder o pai, a agonia do último ano da faculdade e a escolha de um tema para o trabalho de conclusão de curso (TCC) em uma homenagem às famílias que se despediram à força de pessoas queridas por causa da covid-19. Com apoio da orientadora, a professora Ana Carolina Kalume, Beatriz contou as histórias do pai, Erivan Leal, de Antônio Gilmário Antunes Marques e do casal Lianora Rosa Pereira e Jairo Marcílio de Souza.

“Papai não vivia sem a família, os amigos, as viagens e, com certeza, sem a música. Ele acordava cantarolando ou assobiando alguma canção, ou até mesmo um ritmo que ele criou e continuamos a reproduzi-lo aqui em casa”, conta Beatriz. “Acredito que, além do amor, as diversas músicas que escutamos juntos durante a vida nos manterá conectados até o nosso reencontro.”

Assim, com essa garra, Beatriz se formou, emocionando a banca de professores e dando orgulho à professora Kalume com o trabalho final Órfãos da pandemia: histórias de vítimas da covid-19 em relatos sensíveis. “Com sensibilidade e dedicação, a Bia fez um ótimo trabalho”, disse a orientadora. “Aqui na UnB, estimulamos a empatia como elemento fundamental no jornalismo junto com as leituras e as discussões.” 

Segundo a professora, é essencial o estudante, em fim de curso, estar “apaixonado” pelo tema escolhido para o TCC, e foi exatamente o que ocorreu com Beatriz. “A cada encontro, ela trazia uma novidade, uma apuração melhor, um relato mais emocionante. Foi muito gratificante vê-la crescer tanto com o trabalho.” 

Pai

No trabalho, Beatriz mostra que Erivan, o pai dela, era do tipo determinado. Aprendeu a ler e escrever aos 10 anos, depois correu atrás do atraso: formou-se no curso superior e construiu uma carreira em administração de empresas. Quando surgiu a pandemia, tomou todos os cuidados para si e os filhos, Bruno, 34 anos, Caroline, 26, e Beatriz, além da mulher, Kátia. Último a ser contaminado, ele acabou vencido pelo vírus em 27 de maio de 2021 — auge da pandemia.

Entre o diagnóstico e a morte, foi tudo muito rápido, menos de duas semanas, segundo Beatriz. Ela foi informada de que o pai seria intubado e que havia sofrido duas paradas cardiorrespiratórias. Como se isso não fosse o suficiente, teve o pior: o tratamento que ela e a mãe tiveram do hospital.

“Quem vai entrar para reconhecer o corpo?”, perguntou uma profissional de saúde, sem ao menos informar que Erivan havia morrido. A pedido do pai, ele foi cremado. Pouco mais de um ano depois, a família lançou as cinzas dele no mar de Trancoso, na Bahia, lugar que tanto amava.

Defensor do uso da azitromicina como tratamento precoce para a covid-19, o aposentado Antônio Gilmário Antunes Marques pensou que estava protegido. Mas não, foi surpreendido. A filha Bruna ficou desesperada, sobretudo quando chegou à casa do pai e viu que ele estava jogado numa cama quebrada, sem se alimentar e com dificuldades para falar.

Inconformada com a cena e o estado geral do pai, Bruna chamou a ambulância, que não estava disponível. Depois de muita insistência, conseguiu levar Dom Gil, como gostava de ser chamado, para o Hospital Regional de Ceilândia (HRC). Lá, viu o pai, pela última vez, com vida. Infelizmente, o sonho de Dom Gil de ganhar na loteria e “fazer mil coisas” não foi possível por causa da doença que o venceu.

Para Bruna, ficou na memória a imagem do pai: olhos assustados, aterrorizado com o hospital onde estava, superlotado de pessoas intubadas e outras agonizando. A jovem desobedeceu às ordens médicas de manter distância do paciente, abraçou e beijou o pai. Diz não se arrepender, ele ainda estava vivo.    

Eternidade

Lianora Rosa Pereira era cheia de vida. Alegre, tinha sempre ideias criativas e diferentes. Mesmo quando descobriu uma doença autoimune, o lúpus, manteve o humor e a esperança de dias melhores. Mas, aos 47 anos, a determinação dessa mulher forte e vivaz foi dominada pela covid. Ela morreu em junho de 2021. 

A vida da família mudou bastante a partir do momento em que Lianora foi diagnosticada com lúpus. Desde então, o marido e as filhas a acompanhavam em idas constantes ao hospital, para realizar consultas e exames médicos — e a família jamais a deixou ficar desanimada durante o tratamento.

Porém, Lianora sabia que, no caso dela, a covid poderia se tornar mais grave. Parecia prever. Ela morreu depois de ter uma parada cardíaca devido a uma embolia pulmonar. E, 20 dias depois, foi o marido Jairo Marcilio de Souza que não resistiu ao agravamento da doença e acabou morrendo. O casal que namorou, noivou e casou ainda muito jovem, partiu praticamente junto para a eternidade.

Despedida

Livya e Luiza , filhas de Lionaroa e Jairo, não acreditavam no que viviam. Primeiro, a mãe morreu. Menos de um mês depois, foi o pai, Jairo. O exemplo para família de esforço pessoal, determinação e garra foi vencido pelo coronavírus. As “meninas”, como gostava de se referir às filhas, não o viram formar no curso superior de história, que tanto desejava, nem assistir à graduação delas.

O homem que se desdobrou, vendendo salgadinhos na rua, foi cobrador de ônibus, garçom e gerente de churrascaria, tentou resistir à covid. Mas, depois de três semanas, tossindo sangue e frágil, não conseguiu mais. Em 26 de junho de 2021, exatos 20 dias após a morte da mulher, foi ao encontro dela. 

Para Beatriz, que acompanhou os relatos, fica a certeza de que jornalismo é, sobretudo, empatia. “Esse trabalho é um lembrete doloroso de como é crucial mantermos a solidariedade, mesmo diante da repetição de trágicos números, além de homenagear os que amamos.”

Além da estatística

A covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde, matou 710.966 pessoas no país, desde 2020 até os dias atuais, sendo que, proporcionalmente, o Centro-Oeste foi a região mais atingida. Numericamente, o Sudeste foi a que registrou mais mortes.

No Sudeste, foram 342.471 óbitos confirmados, enquanto no Centro Oeste foram 66.976, mas com uma incidência de 1,57 para cada 100 mil habitantes, a maior taxa do país.

Este ano, as autoridades públicas passaram a comemorar a redução no número de mortos e de novos casos da doença, avaliando de 10 a 16 de março, e o mesmo período do ano passado. Segundo o Ministério da Saúde, houve queda de 10,8%em novos casos e 5,4% de óbitos. Os dados são do Informe de Vigilância das Síndromes Gripais 11.

Por Renata Giraldi do Correio Braziliense

Foto: Arquivo pessoal / Reprodução Correio Braziliense

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