Como a saúde mental dos adolescentes reflete problemas da vida contemporânea

Na terceira reportagem da série, a BBC News Brasil conversa com psicanalistas e psicólogos para entender as fontes de sofrimento que levam os jovens ao divã.

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Nesta segunda reportagem da série da BBC News Brasil dedicada à saúde mental, focamos no cuidado profissional do sofrimento na adolescência – um período da vida tipicamente marcado por transformações numerosas e significativas, essenciais para a passagem à vida adulta.

Algumas delas, porém, podem gerar preocupação e disparar o alarme de que algo não vai bem.

O tema tem sido amplamente debatido depois da estreia da série Adolescência, da Netflix. A história de Jaime, de 13 anos, acusado de esfaquear uma garota, virou o centro do debate sobre os fatores que poderiam tê-lo levado a se tornar um assassino.

Fora das telas, muitas questões levam os adolescentes a frequentarem um divã, e o amor entra como elemento comum em muitas delas, afirma a psicanalista Diana Lichtenstein Corso, coautora do livro Adolescência em cartaz: psicanálise e filmes para entendê-la (Artmed).

Que os adultos não subestimem, pois amor é coisa séria já no começo da vida: “toda conquista é uma odisseia, toda ruptura é uma catástrofe”, ela exemplifica.

Conflitos nas amizades e o tema da lealdade também aparecem, especialmente nos dilemas éticos. Assim como a timidez, considerada pelo adolescente como um defeito terrível, explica Diana.

“Neste contexto de hiperexposição, tanto corporal como nas redes [sociais], qualquer trava – necessária – que mantenha o jovem longe da fogueira das vaidades vai soar como uma grave falha pessoal.” Como a ideia é desenvolver o pensamento crítico nesta fase da vida, Diana propõe que essas exigências de se expor e aparecer sejam debatidas, assim como “a estupidez de certos padrões”, sem debochar dos deuses eleitos pelos jovens na internet.

As situações de sofrimento variam, mas em todos os contextos vigora o drama da inadequação, da solidão, da autoaceitação inatingível e da incerteza sobre o futuro, contextualiza Diana.

É como se o adolescente se cobrasse de corresponder com o ideal social que ele tem, e essa cobrança se manifesta em um grande ódio de si, julgando ser incapaz de fazer qualquer coisa que preste. Não raro observa-se depressões abastecidas desses sentimentos.

Dificuldades nas relações familiares, pressões escolares, episódios de racismo, LGBTfobia e sexismo são outras fontes de sofrimento que levam o adolescente a buscar cuidado em saúde mental, explica o psicólogo Marcos Amaral, doutor em Psicologia da Educação pela PUC-SP e coordenador executivo e de incidência política e institucional da Amma Psique e Negritude. As incertezas quanto ao futuro muitas vezes dão lugar à desesperança.

“Muitos adolescentes relatam ansiedade, tristeza profunda ou comportamentos impulsivos, mas nem sempre conseguem identificar ou expressar claramente o que sentem.”

A escola como fonte ou refúgio

Muitas vezes o sofrimento tem a escola como participante, direta ou indiretamente, o que evidencia o papel fundamental dela na vida dos adolescentes, ressalta Amaral.

“Longe de ser um ambiente neutro, a escola é uma instituição social que carrega as contradições sociais, sendo, ao mesmo tempo, um espaço de aprendizado e de (re)produção da desigualdade social. Pressões acadêmicas, exclusão social e violência simbólica ou explícita, como o racismo e a LGBTfobia, intensificam o sofrimento dos adolescentes”, exemplifica o coordenador da Amma.

O psicanalista Alexandre Patrício de Almeida, doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autor de dois volumes de Por uma ética do cuidado (editora Blucher), sugere que as escolas recebam preparo para poder lidar com as questões de saúde mental dos alunos. Segundo ele, intervenções psicanalíticas feitas em um único encontro, baseadas nas consultas terapêuticas do pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott, poderiam auxiliar.

Isso significa um treinamento ou orientação que passem pelas bases da psicanálise para que os professores possam ter recursos de atuação, especialmente quando estiverem falando com os alunos. Mas é fundamental que os docentes também recebam cuidados. “A gente precisa cuidar dos cuidadores. Ajuda muito se a escola puder oferecer uma rede de escuta, ainda que seja em grupo, uma vez por mês, com um psicanalista presente lá”, recomenda Almeida.

A demanda por performance e produtividade, tão comum no mercado de trabalho, também chegou à educação. Mário Corso, psicanalista e coautor do livro Adolescência em cartaz: psicanálise e filmes para entendê-la (Artmed), diz que os pais escolhem a escola que eles pensam que transmitirá seus valores, e isso os leva a buscarem instituições duras, competitivas, para preparar seu filho para a vida profissional.

Como muitas delas têm como filosofia atender ao desejo do cliente (no caso, os pais), são esses os valores transmitidos em sala de aula. “Os pais são obcecados por indícios que lhes assegurem que seus filhos vão se dar bem na vida. O que a escola pode fazer é ser um escudo contra as demandas excessivas”, recomenda.

Em termos práticos, trata-se de focar no presente do aluno, não no que ele vai ser: “criar um ambiente menos ansiogênico quanto ao desempenho e investir na socialização dos alunos entre si, para que não se criem ilhas, círculos fechados. Um adolescente não encaixado em seu grupo dificilmente terá bom desempenho; ele gastará seu tempo em ser aceito, ou com fantasias de vingança contra o grupo e a escola”, alerta Corso.

Nomear as dores

Segundo o psicólogo Marcos Amaral, quando os adolescentes chegam ao consultório ou a uma instituição de saúde mental, o trabalho começa com a nomeação do que os fazem sofrer.

“É um processo conjunto, em que o adolescente gradualmente identifica e compreende o que sente”, descreve o coordenador da Amma.

“Além disso, os espaços de saúde mental devem permitir ao paciente refletir sobre as maneiras de enfrentar o que produz seu sofrimento, principalmente de forma coletiva. Mesmo quando o cuidado é individual, é fundamental que o profissional costure com os jovens e as jovens saídas coletivas e solidárias, auto-organizadas, que envolvam a família, a escola e a comunidade”, destaca Amaral.

“Para tanto, é fundamental que a sociedade brasileira fortaleça espaços de cuidado coletivos, em liberdade e territorializados, vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), como os Centros de Apoio Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPS)”, ressalta o psicólogo.

Espaço sigiloso e imune às expectativas dos pais

Se as brincadeiras dão acesso ao que se passa com as crianças, com os adolescentes este canal vem pelas narrativas, como os diários, ou mesmo redes sociais como o Tik Tok, que funcionam como diários imagéticos, explica a psicanalista Rosa Maria Marini, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento pela USP e organizadora dos livros Gênero e sexualidade na infância e adolescência: reflexões psicanalíticas e A vivência da morte e do luto na infância e adolescência (ambos pela editora Ágalma).

“Cabe ao analista ajudar o paciente a construir sua narrativa de si e do mundo a partir desses elementos em jogo”, afirma Marini.

Apesar de ser um espaço exclusivo para o adolescente, o tratamento é alvo de expectativas e receios dos pais, pontua a psicóloga Louise Madeira, especialista em Terapia Familiar e de Casais pela PUC-SP.

“Há o medo de que esse novo adulto que entrou no sistema subverta, de alguma forma, o controle parental, ou por contrariar as regras impostas pela família, ou por criar um vínculo muito forte com aquele filho ou filha que parece afetivamente tão distante deles”, explica Madeira, criadora do podcast New Me, em que faz reflexões a partir de quase 40 anos de experiência com atendimentos psicológicos.

Já as expectativas seguem o que ela chama de “lógica liberal”: “que o processo apresente resultados concretos e que seja produtivo para aquela família, em termos de quantidade de adesões aos comandos parentais, de aumento de notas na escola, de diminuição de número de dias em que o quarto fica desarrumado, que haja um incremento do desejo de convivência próxima com a família, e por aí vai”, descreve Madeira.

Só que não funciona assim.

A psicanalista Adela Stoppel de Gueller, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP e coordenadora do Departamento de Psicanálise com Crianças no Instituto Sedes Sapientiae, explica que a adolescência é um tempo importante de separação dos pais e de criação de uma intimidade própria.

“Os psicanalistas temos frequentemente essa função de ser interlocutores adultos que não são os pais e para quem os adolescentes podem endereçar questões sabendo que o sigilo será preservado; ou seja, o psicanalista é um adulto não familiar com quem o jovem pode conversar e se interrogar sem se sentir invadido ou atropelado pelos pais.”

O trabalho realizado consiste em construir saídas para os problemas, o que só é possível com sigilo e confiança no profissional. Aborrecidos com lero-lero ou mentiras à sua volta, o que os adolescentes querem do tratamento são soluções, identifica a psicanalista Diana Lichtenstein Corso. “Pensar saídas não quer dizer que daremos conselhos com atitudes práticas a tomar, mas, sim, que iremos mapear juntos os problemas e elencar os caminhos possíveis que eles apontam”.

“Não significa que vamos restringir qualquer cenário complexo a abordagens banais, mas, sim, que vamos assegurar ao paciente de que haverá saídas. Na adolescência, os problemas são paralisantes”, assinala Diana.

O desafio do digital e instantâneo

Assim como na clínica com crianças, o atendimento de adolescentes traz à tona a sintomática influência das redes sociais sobre o modo de viver dos pacientes. Mexem, sobretudo, com as identificações, ou seja, as maneiras como eles se reconhecem e se veem no mundo.

“A identificação é uma colcha de patchwork, aquela arte de combinar pedacinhos de tecidos bem diferentes em imagens bonitas. Para chegar a possuir algo parecido com um ‘eu’, vamos coletando, selecionando e armando nossa colcha de influências. Nesse sentido, a família pode contribuir com o padrão dominante, mas a escola, a cidade, a arte de cada época, a religião, em suma, o círculo humano que rodeia a família, também contribuem com suas padronagens”, detalha Diana.

Como a internet entra nisso? “Pense que colocamos todas essas influências em um liquidificador, reduzindo-as a pedaços muito pequenos que se organizam provisoriamente, não como uma colcha, mas, sim, como as imagens de um caleidoscópio”, acrescenta.

Para se criar o “eu”, é preciso pausar um pouco, processar essas referências. O que a internet faz é multiplicar todas elas e trocá-las incessantemente, sem que haja espaço para a pessoa ancorar em terra firme e lidar com as referências disponíveis, até para que possa decidir quais ficam e quais podem ser descartadas.

“As redes sociais, desgovernadas e excessivas como se tornaram, são uma fábrica de fragilidades psíquicas. Seus usuários não têm pouso, nem repouso, porque precisam buscar referências em imagens provisórias, que se diluem com qualquer movimento, como no caleidoscópio”, lamenta Diana.

Organizar o pensamento torna-se, então, uma tarefa praticamente impossível, especialmente com o ritmo acelerado das imagens e ideias. “Enquanto não se equalizar a relação dos humanos com o maravilhoso monstro que criaram, seguiremos como uma tela estragada, onde a imagem pula, mistura linhas e perde sua estrutura”, adverte a psicanalista.

Das redes sociais tem vindo grande parte das questões de saúde mental dos jovens, alerta Mário Corso. “Há uma extraordinária coincidência entre o surgimento do celular, dos smartfones e do começo das redes sociais, com o aumento expressivo de todos os índices que medem o sofrimento dos adolescentes”.

Um exemplo é o bullying. Antes, quando chegava em casa e durante o fim de semana, o adolescente era poupado. Hoje, as ofensas chegam a qualquer instante, pelo celular. “Agora não tem hora para acabar o sofrimento”. Por isso, ele considera bem-vinda a proibição de eletrônicos em sala de aula, referindo-se à recém-sancionada lei federal que proíbe o uso de aparelhos celulares por alunos nas escolas públicas e privadas de todo o Brasil.

“Cabe agora aos pais restringir o uso dentro de casa. O que é difícil, pois eles também são viciados”, pondera Corso.

Por Amanda Mont’Alvão Veloso – De São Paulo para a BBC News Brasil

Foto: Getty Images / Reprodução Correio Braziliense

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