Quando um paciente começa a apresentar sintomas como tremores nas mãos, rigidez muscular ou lentidão nos movimentos, o diagnóstico de Parkinson já pode estar atrasado em alguns anos. Agora, uma tecnologia desenvolvida por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla) poderá transformar esse cenário, detectando a doença neurodegenerativa precocemente, com o auxílio de uma caneta.
A proposta, publicada na Nature Chemical Engineering, é uma caneta inteligente, de baixo custo, portátil, sem fio e sem necessidade de energia externa, que consegue identificar sinais precoces da doença de Parkinson com mais de 96% de precisão. O segredo está na forma como as pessoas escrevem — não no conteúdo da caligrafia, mas nos movimentos sutis, na pressão aplicada e nos tremores quase imperceptíveis captados durante o ato de escrever.
Com a aparência de uma esferográfica comum, a caneta, contudo, tem um funcionamento sofisticado. A ponta é feita de um material chamado magnetoelástico, composto por silicone com partículas magnéticas que reagem a pressões e deformações. A tinta é um fluido com nanopartículas (ferrofluido) que se movem em resposta a campos magnéticos. Juntas, essas estruturas convertem cada gesto da escrita em sinais elétricos, registrados por uma bobina embutida no dispositivo.
Os sinais, que variam conforme a intensidade, frequência e estabilidade dos movimentos, são processados por um sistema de inteligência artificial. Em testes com 16 voluntários — incluindo três pacientes com Parkinson —, os pesquisadores conseguiram distinguir, com base apenas nas informações capturadas pela caneta, quem tinha a doença e quem era saudável. “Nossa caneta não depende da análise visual da caligrafia, mas sim do padrão biomecânico da escrita, o que permite detectar alterações motoras ainda discretas”, diz o artigo.
Complexidade
A escrita manual é uma das tarefas mais complexas realizadas pelo ser humano. Envolve habilidades motoras finas, coordenação entre olhos e mãos, percepção espacial e controle cognitivo. Por isso, alterações neurológicas costumam afetar esse processo de forma precoce.
No caso do Parkinson, que afeta 10 milhões de pessoas globalmente, é comum que as letras fiquem tremidas, executadas mais lentamente e com tamanhos menores, sintoma conhecido como micrografia. Porém, no geral, esses sinais são notados visualmente quando a doença já está em estágio moderado. O diferencial da nova tecnologia é detectar o problema antes da manifestação visível. “Mesmo quando a caligrafia ainda parece normal a olho nu, a caneta consegue captar variações sutis de pressão, ritmo e tremores”, escreveram os autores.
A análise é feita com o auxílio de uma rede neural convolucional, um tipo de algoritmo de aprendizado profundo treinado para reconhecer padrões em grandes volumes de dados. No estudo, o modelo atingiu a acurácia de 96,2%.
“As redes neurais conseguem identificar padrões complexos e não lineares nos dados de escrita ou desenho, muitas vezes imperceptíveis ao olho humano, melhoram a acurácia e reprodutibilidade na triagem e permitem aprendizado contínuo, refinando o modelo com novos dados”, destaca a neurocirurgia Vanessa Milanese, diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia (SBN). Ela alerta, porém, que é preciso um treinamento robusto para evitar erros na interpretação. “Há riscos de viés algorítmico, se os dados de treinamento não forem representativos e possibilidade de falsos positivos/negativos, especialmente se usado de forma isolada sem validação clínica”, diz.
Escala
Segundo autores do estudo, além da precisão, um dos maiores trunfos da caneta é o potencial de fabricação e uso em larga escala. Diferentemente de exames neurológicos tradicionais, que requerem acesso a médicos especialistas, equipamentos caros ou coleta de líquido cefalorraquidiano, o dispositivo pode ser usado em casa, em postos de saúde ou em regiões remotas.
Feita com materiais de baixo custo e compatível com impressão 3D, a caneta é leve, reutilizável e opera sem energia externa, não dependendo de baterias ou tomadas. Os dados podem ser transmitidos por Bluetooth para análise em um computador ou aplicativo. Os autores destacam o potencial da ferramenta especialmente para populações vulneráveis, sem acesso a diagnósticos especializados.
“Estamos falando de uma solução portátil, autossuficiente, que pode mudar o paradigma do rastreamento de doenças neurológicas”, diz o artigo. “É uma ferramenta especialmente valiosa para populações vulneráveis, que normalmente enfrentam barreiras no acesso a diagnósticos especializados.”
Segundo André Felício, neurologista do Hospital Israelita Albert Einstein, há outros precedentes na literatura médica que usam sensores, como pulseiras e relógios, para auxiliar no diagnóstico de Parkinson. Embora acredite que esses dispositivos não vão substituir os critérios já utilizados — avaliações clínicas e de neuroimagem —, o médico considera que são importantes instrumentos complementares. “Uma grande vantagem dessa tecnologia é que ela tem um custo acessível, pode ser escalada, e seria uma maneira simples de auxiliar no diagnóstico em lugares mais remotos, onde não tem neurologistas ou neurologistas especialistas em transtornos do movimento.”
TRÊS PERGUNTAS PARA…
GUORUI GARY CHEN, candidato a PhD no Departamento de Bioengenharia da Ucla
O que motivou o desenvolvimento da caneta diagnóstica?
A motivação por trás do desenvolvimento desta caneta diagnóstica advém de seu novo mecanismo de funcionamento: o efeito magnetoelástico em materiais macios — um fenômeno tradicionalmente observado em metais rígidos e aplicado principalmente na engenharia civil. Nesse trabalho, estendemos essa tecnologia fundamental para o campo do diagnóstico de doenças neurodegenerativas. O dispositivo resultante é uma caneta macia e autoalimentada que captura o movimento fino da escrita à mão para avaliar a doença de Parkinson (DP), representando um passo importante na tradução das inovações da ciência dos materiais em ferramentas práticas de diagnóstico para uso clínico e doméstico.
Fatores como idade, medicação ou dominância da mão foram considerados?
Em nosso estudo piloto, focamos em pacientes idosos com DP que não estavam em uso de medicação no momento do teste e presumimos que os sintomas motores afetavam principalmente a mão dominante. Dado o tamanho limitado da população estudada, pesquisas futuras incluindo pacientes de diferentes idades, estados de medicação e estágios da doença serão importantes. Além disso, pesquisas clínicas anteriores sugerem que, na maioria dos casos, a DP afeta inicialmente a mão dominante, embora um número considerável de pacientes apresente sintomas iniciais na mão não dominante. Investigações adicionais nesses subgrupos podem fornecer insights mais aprofundados sobre como esses fatores influenciam os sinais de escrita.
Quando o senhor espera que essa tecnologia chegue à clínica?
É necessária uma validação adicional por meio de estudos em larga escala com humanos para confirmar a eficácia diagnóstica da caneta. Embora ainda sejam necessárias muitas pesquisas e desenvolvimento, estamos otimistas quanto ao seu potencial para uso futuro em ambientes clínicos e domiciliares. (PO)
Desafios para incorporação clínica
Apesar dos resultados promissores da caneta que detecta sinais precoces da doença de Parkinson, a tecnologia está em fase piloto. A amostra foi pequena — 16 pessoas, incluindo três pacientes — e será necessário ampliar os testes com populações maiores e mais diversas, incluindo indivíduos em diferentes estágios da doença, com comorbidades e variadas faixas etárias.
No futuro, os pesquisadores também esperam adaptar o dispositivo para monitorar a progressão da doença, avaliar a resposta a tratamentos ou até mesmo detectar outras condições neurológicas, como Alzheimer, esclerose múltipla e tremores essenciais. A neurocirurgiã Vanessa Milanese acredita que a ferramenta tem o potencial para tanto. “O Alzheimer pode causar alterações na fluência, traços motores e na organização espacial podem ser captadas em tarefas de escrita/desenho”, diz. “Mas essas condições geralmente exigem uma combinação de exame clínico, biomarcadores e neuroimagem para diagnóstico definitivo”, ressalta.
Maciel Pontes, médico neurologista do Hospital de Base do DF, acredita que, depois de estudos maiores validarem a tecnologia, a caneta poderá monitorar a progressão do Parkinson e avaliar a resposta ao tratamento. “O dispositivo registra variações em tempo real e pode ser usado repetidamente, o que abre caminho para acompanhamento longitudinal da doençam avaliação da eficácia de tratamentos e de melhora funcional”, diz.
Mas ainda há uma série de obstáculos que precisam ser superados antes de se pensar na incorporação do dispositivo na prática clínica e, especialmente, nas redes públicas de saúde. “É necessário validar os sinais como biomarcadores digitais reconhecidos, inclusive com agências reguladoras como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)”, diz Pontes. “Outro ponto é o treinamento de profissionais. Apesar de fácil de usar, a caneta exigiria capacitação básica de profissionais da atenção primária para coleta de dados e interpretação.” (PO
Por Painel da Cidadania
Fonte Correio Braziliense
Foto: Flickr/Divulgação