Escalas de trabalho podem afetar os rins, conclui pesquisa

Estudo com mais de 226 mil pessoas indica que turnos irregulares aumentam em 22% o risco de formação de cálculos, uma das doenças urológicas mais comuns. Funcionários noturnos também são prejudicados

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Trabalhar em escalas aumenta em 15% o risco de desenvolver cálculo renal, a famosa pedra nos rins, comparado a quem mantêm uma rotina laboral regular. Entre os que atuam frequentemente em turnos alternados ou noturnos, como profissionais das áreas de segurança, medicina e transporte, a chance é ainda maior: 22%. A conclusão é do maior estudo já realizado sobre saúde ocupacional e doenças renais, que incluiu dados de 226 mil pessoas, acompanhadas por 14 anos. 

Também conhecido como nefrolitíase, o cálculo renal é uma das doenças urológicas mais comuns, com prevalência que varia de 1% a 13% da população mundial. Embora geralmente curável, metade dos pacientes sofre recorrência em até 10 anos. Além da dor intensa, o problema está ligado ao risco aumentado de insuficiência renal crônica e doenças cardiovasculares. Também é uma das principais causas de afastamento do trabalho. 

No Brasil, estima-se que cerca de 10% dos adultos sofram ao menos um episódio de cálculo ao longo da vida, segundo a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) e, segundo dados do Ministério da Saúde, o número de internações hospitalares associadas ao problema tem aumentado anualmente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) calcula que cerca de um em cada cinco trabalhadores no mundo realiza algum tipo de trabalho em turnos; a estimativa nacional mais recente, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é de que 6,9 milhões exerçam suas funções laborais em horários atípicos. 

Hormônios

Os autores do estudo, da Universidade Sun Yat-sen, na China, explicam que a exposição contínua a horários irregulares, principalmente à noite, afeta o ritmo circadiano (o relógio biológico), o metabolismo e a secreção hormonal, fatores que repercutem na função renal. Estudos anteriores já haviam apontado que trabalhadores noturnos são mais propensos a obesidade, hipertensão e doenças cardiovasculares, condições que também favorecem o desenvolvimento de cálculos. 

Segundo o urologista Irineu Neto, da Amplexus Saúde Especializada, o ciclo circadiano regula funções essenciais do rim, como a filtração glomerular, a reabsorção de eletrólitos e a concentração urinária. Quando uma pessoa trabalha à noite ou no esquema de escalas, há uma desorganização desse sistema, com consequências diretas no órgão. Entre elas, a alteração na secreção do hormônio antidiurético (ADH). “O organismo tende a concentrar mais a urina durante o turno noturno, aumentando o risco de supersaturação urinária e precipitação de cristais”, explica.

Neto também diz que interrupções no ciclo circadiano promovem mudanças no metabolismo de cálcio, fosfato e ácido úrico, com aumento da excreção de sais que participam da formação de cálculos. “Além disso, há maior estresse oxidativo e inflamação renal, o que prejudica os mecanismos protetores das células tubulares contra a cristalização. Assim, o desalinhamento do relógio biológico com o ciclo claro-escuro favorece o acúmulo de cristais e a formação de cálculos renais.”

Estilo 

O estilo de vida pode justificar parte da associação encontrada na pesquisa, publicada na revista Mayo Clinic Proceedings. Até 22% do efeito do trabalho em turnos sobre o risco renal está associado ao aumento do peso corporal. Tabagismo e sono inadequado respondem, cada um, por cerca de 6%. Por outro lado, a ingestão de líquidos — especialmente água, chá e café — demonstrou papel protetor, reduzindo a chance de cálculo nos rins em quase 18%.

Os autores do estudo argumentam que os impactos do turno irregular vão além do desequilíbrio do relógio biológico. “Fumar, dormir mal, permanecer longos períodos sentado e ter índice de massa corporal elevado foram identificados como mediadores importantes da relação entre trabalho em turnos e formação de cálculos renais”, escreveram Man He e Yin Yang, principais autores do artigo. 

O estudo usou estatísticas do UK Biobank, um banco de dados britânico que reúne informações genéticas, clínicas e comportamentais de meio milhão de voluntários. Foram excluídas as pessoas que já tinham histórico de cálculo renal, totalizando 226.459 participantes empregados ou autônomos, com idades entre 37 anos e 73 anos no início da pesquisa. Durante o período de acompanhamento — de 2006 a 2023 — 2.893 deles desenvolveram nefrolitíase. 

Sedentarismo

Os efeitos foram observados mais em profissionais com menos de 50 anos e que realizam atividades de baixo esforço físico. “Aparentemente, a menor ingestão de líquidos entre trabalhadores com atividades sedentárias ajuda a explicar esse resultado”, observa o artigo.

Para Yin Yang, epidemiologista e coautor do estudo, os resultados reforçam a necessidade de políticas de saúde voltadas a trabalhadores com horários não convencionais. “Nossas descobertas indicam que o trabalho em turnos deve ser considerado um fator de risco para cálculos renais. É preciso promover estilos de vida saudáveis nesse grupo, incluindo hidratação adequada, manutenção do peso, sono regular e redução do sedentarismo e do tabagismo”, destaca o pesquisador.

“Os resultados do estudo destacam a necessidade de explorar iniciativas que busquem remediar os fatores de risco para cálculos renais, incluindo maior flexibilidade nos horários de trabalho”, acredita Felix Knauf, da Divisão de Nefrologia e Hipertensão da Clínica Mayo, em Rochester, que escreveu um editorial sobre a pesquisa. Knauf cita, entre outras iniciativas, o incentivo a check-ups regulares com exames renais simples, como ultrassonografia; a promoção de campanhas sobre hidratação e controle de peso, e a oferta de ambientes de descanso apropriados. 

Os autores do artigo concordam que pequenas mudanças podem reduzir significativamente o risco de pedra nos rins. “Nossos resultados indicam que intervir em fatores modificáveis, como peso corporal e hábitos de sono, pode evitar uma parcela considerável dos casos de cálculo renal entre trabalhadores em turnos”, escreveram. “Cuidar do corpo e respeitar o ritmo biológico é essencial — mesmo quando o relógio insiste em dizer o contrário.”

Quatro perguntas para

Rafael Buta, urologista, especialista em cirurgia robótica da Clínica Veridium 

De que forma a alteração do ritmo circadiano pode favorecer o acúmulo de cristais nos rins?

O trabalho em turnos, especialmente o noturno, desregula nosso relógio biológico (ritmo circadiano). Essa alteração impacta o metabolismo e pode levar à obesidade, elevando os níveis de cálcio no organismo. O excesso de cálcio na urina é um dos principais componentes da maioria dos cálculos. Além disso, a desregulação circadiana causa estresse oxidativo e inflamação, que estão envolvidos diretamente na formação de cristais de oxalato de cálcio nos rins, aumentando o risco de cálculos.

De que modo fatores como sono inadequado e sedentarismo influenciam o risco de doença renal a longo prazo?
Com o tempo, o sono inadequado eleva o estresse oxidativo e a inflamação no corpo, processos que facilitam a formação de cristais nos rins. Já o sedentarismo prolongado pode desencadear a síndrome metabólica, que é um conhecido fator de risco para o desenvolvimento de cálculos renais. Ambos afetam o equilíbrio do corpo, tornando-o mais propenso a essa condição.

O consumo de café ou chá, comuns em quem trabalha à noite, pode contribuir positivamente para a hidratação?

O estudo sugere que o consumo de café pode estar associado a uma menor incidência de cálculos renais, mesmo considerando seu teor de oxalato. Café, chá e água são contabilizados na ingestão total de líquidos. Manter uma boa hidratação ajuda a diluir a urina e a eliminar cristais, reduzindo o risco de formação de pedras nos rins. Portanto, essas bebidas podem, sim, contribuir positivamente para a hidratação.

Que medidas preventivas poderiam ser implementadas em empresas com regimes noturnos?

Empresas com regimes noturnos podem promover hábitos saudáveis. Isso inclui oferecer horários de trabalho flexíveis para minimizar a desregulação circadiana e implementar programas educativos focados em: manejo do peso, aumento da ingestão de líquidos, bons hábitos de sono, redução do sedentarismo e abandono do tabagismo. Incentivar uma alimentação equilibrada também é fundamental. (PO)

Hábitos protetores

O urologista Irineu Neto ensina como reduzir o risco de cálculos renais: 

1. Hidratação: as diretrizes da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) recomendam que adultos ingiram uma média de 2,5l a 3l de líquidos diários; 

2. Manter rotina de sono regular, mesmo nos dias de folga, e dormir em ambiente escuro e silencioso;

3. Reduzir o consumo de sal (menos de 5g/dia) e de proteína animal, pois aumentam a excreção de cálcio e ácido úrico;

4. Evitar bebidas açucaradas e energéticos, muito usados em turnos, que favorecem a litogênese;

5. Consumir frutas ricas em citrato, como limão e laranja, que inibem a cristalização;

6. Urinar com frequência, evitando longos períodos de retenção;

7. Manter peso corporal adequado e praticar atividade física regularmente.

Por Painel da Cidadania

Fonte Correio Braziliense

Foto: Divulgação

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