Terceiro tipo mais comum no mundo e segunda principal causa de morte por câncer, o tumor colorretal tem, entre os fatores de risco, o desequilíbrio da microbiota. Com base nesse conhecimento, pesquisadores da Universidade de Genebra, na Suíça, apostam em uma nova ferramenta para ajudar na detecção precoce e também no desenvolvimento de terapias personalizadas: a avaliação de subespécies de bactérias que habitam o intestino. Em um estudo publicado na revista Cell Host & Microbe, os cientistas sugerem que, futuramente, uma simples amostra de fezes poderá ajudar a diagnosticar e tratar a doença com um nível de individualização sem precedentes.
Tradicionalmente, estudos do microbioma intestinal — conjunto de microrganismos que habitam o intestino — se concentram na identificação de espécies bacterianas. Porém, variações genéticas de um mesmo micróbio podem alterar completamente sua função, e essa diversidade passa despercebida nos métodos de triagem tradicionais.
Para enfrentar a limitação, a equipe de Genebra, liderada por Mirko Trajkovski e Evgeny Zdobnov, criou o HuMSub, um catálogo abrangente de subespécies, identificadas por sequenciamento genético. “As subespécies carregam informações implícitas que não conseguimos detectar no nível de espécie”, explica Trajkovski. “Essas diferenças sutis podem estar diretamente ligadas ao desenvolvimento de doenças como o câncer colorretal, e compreendê-las é fundamental para avançar na medicina de precisão.”
Hospedeiro
O estudo analisou, em detalhes, 977 espécies bacterianas. Cerca de 28% tinham variações anteriormente despercebidas. Com a nova abordagem, os cientistas detectaram 5.361 unidades operacionais de subespécies (OSUs) na amostra pesquisada. As diferenças genéticas, segundo os autores, influenciam como as bactérias interagem com o hospedeiro humano e com outros organismos no ecossistema intestinal.
Ao aplicar essa nova abordagem a 1.085 amostras de microbioma fecal — sendo 555 de pacientes com câncer colorretal e 530 de indivíduos saudáveis — os pesquisadores encontraram 218 subespécies associadas à doença. Em mais da metade dos casos, ao menos uma variante estava ligada ao tumor oncológico, enquanto outra, do mesmo grupo, não tinha a mesma associação.
Um exemplo é a bactéria Fusobacterium animalis, cuja presença no intestino já havia sido associada a tumores. A equipe encontrou duas subespécies distintas, mas apenas uma delas, chamada OSU 001002, estava significativamente aumentada em pacientes com câncer. “Isso demonstra que o que chamamos genericamente de ‘espécie associada ao câncer’ pode, na verdade, se referir a um subconjunto muito específico de microrganismos”, destaca Zdobnov.
Benéfica
Outra descoberta considerada relevante pelos cientistas refere-se à Ruthenibacterium lactatiformans: enquanto a espécie não apresentava ligação com o câncer, uma subespécie específica estava presente em níveis elevados nos pacientes. Já entre microrganismos considerados benéficos, como Faecalibacterium prausnitzii, algumas OSUs estavam reduzidas nos doentes. “A análise no nível de subespécie não só aumenta a precisão das associações, como também ajuda a explicar por que resultados de diferentes estudos muitas vezes divergem”, afirma Matija Trickovic, primeiro autor do artigo.
A equipe também desenvolveu um algoritmo de aprendizado de máquina treinado com perfis de subespécies para distinguir amostras de pacientes e controles saudáveis. O desempenho do modelo superou o de ferramentas tradicionais baseadas em espécies, afirmam os pesquisadores. Quando combinado ao exame de sangue oculto nas fezes — teste usado em triagens populacionais —, a capacidade de detecção foi ainda maior.
Para os autores, a descoberta abre caminho para testes não invasivos de rastreamento do câncer colorretal com maior acurácia, usando apenas uma amostra de fezes e análise do microbioma. “A camada adicional de informação oferecida pelas subespécies aumenta a capacidade preditiva dos modelos. Isso é essencial para transformar essas descobertas em ferramentas clínicas úteis”, acredita Trickovic.
Rastreamento
O oncologista Matheus Andrade, do Hospital Brasília, da Rede Américas, acredita que a abordagem desenvolvida na Universidade de Genebra poderá ser útil no rastreamento de outros tipos de câncer. “Apesar de o estudo atual ter restringido a análise aos câncer colorretal, acredito que a metodologia aplicada de sequenciamento de alta resolução ao nível de subespécies bacterianas e aprendizado de máquina pode ser adaptada para outras neoplasias”, diz. Para isso, o médico destaca a importância de amostras microbiológicas relevantes — tecido, mucosa, líquidos corporais, fezes, saliva —, além de diferenças consistentes nas comunidades microbianas entre pacientes doentes e saudáveis.
Andrade lembra que o diagnóstico precoce é vital no tratamento de câncer, incluindo o colorretal. “Se a avaliação do microbioma intestinal futuramente contribuir para aumentar a fração de tumores detectados antes de se espalharem, seu impacto em termos de saúde pública pode ser bastante significativo, especialmente em regiões onde a adesão ao rastreamento tradicional é baixa, ou onde a infraestrutura de colonoscopia é limitada.”
Para Cristovam Scapulatempo Neto, médico patologista e diretor médico de Anatomia Patológica e Genética Dasa, a ferramenta proposta pelos cientistas da Universidade de Genebra também tem importantes implicações para o tratamento de tumores oncológicos. “Com base nas informações genômicas do microbioma, é possível desenvolver terapias direcionadas ao microbioma, como uso de prebióticos, probióticos ou transplante de microbiota fecal, para modular a composição e a função do microbioma e melhorar os resultados clínicos”, acredita.
Além disso, Scapulatempo Neto destaca o aspecto da prevenção. “No futuro, as análises genéticas do microbioma podem ser incorporadas aos painéis genômicos de predisposição ao câncer em testes preventivos. Isso permitiria identificar indivíduos com maior risco de desenvolver câncer com base em sua predisposição genética e em sua composição microbiana e implementar intervenções como mudança na dieta para modular o ecossistema e reduzir o risco da doença.”
TRÊS PERGUNTAS PARA
LUCIANO AMBROSINI, cirurgião digestivo e bariátrico da Amplexus Saúde Especializada
Quais as vantagens e desvantagens do teste baseado em subespécies em comparação aos métodos de rastreamento já usados?
As vantagens são que, potencialmente, seria um exame mais barato de se realizar, além de não ser invasivo e dispensa. Diferentemente da colonoscopia, o exame de coleta de fezes não precisa que o paciente vá ao hospital ou numa clínica. Entre as desvantagens, ele não dá o diagnóstico definitivo. Mesmo as cepas tendo uma correlação maior com casos de neoplasia, o diagnóstico definitivo é com a colonoscopia porque ela nos possibilita fazer uma biópsia da lesão.
Se confirmadas em estudos maiores, as descobertas poderiam levar a intervenções personalizadas?
Cada vez que a gente estuda mais os fatores relacionados à ocorrência de câncer, descobrimos que é um cenário complexo. Como vimos no estudo, não apenas ter aquele micro-organismo aumenta o risco, mas ter subgrupos dele. No futuro, isso tem um grande potencial de tratamento guiado. Além de saber que o paciente tem aquela cepa de bactérias, caso ele tenha aquele subgrupo, podemos tentar modular, por exemplo, com o uso em potencial de probióticos com determinadas cepas, vamos dizer, benignas, ou com cepas de bactérias que combateriam aquelas cancerogênicas. Há um leque grande de intervenção personalizada, que é o caminho que a medicina cada vez mais adota.
O estudo mostra diferenças geográficas na prevalência de subespécies. Como isso pode influenciar a prática clínica em países como o Brasil?
O Brasil é um país continental, com diversas regiões, climas, etnias, culturas, solos e hábitos alimentares diferentes, solos diferentes. Isso, necessariamente, influencia a microbiota, influencia os micro-organismos que habitam o nosso tubo digestivo. Então, assim, a descoberta tem maior relevância ainda para um país do tamanho do Brasil, porque possibilita tratamentos ou intervenções regionais. Por exemplo, por várias razões, quer seja por alimentação ou por clima, a gente descobre que em determinada região do país tem uma cepa carcinogênica mais prevalente, então, podemos fazer uma orientação individualizada. (PO)
Por Painel da Cidadania
Fonte Correio Braziliense
Foto: Harvard University/iStockphoto