Trabalhar como entregador de aplicativo não estava nos planos do ex-atleta Caíque Palma de Souza, de 23 anos. Mesmo que estivesse, ele teria dificuldades para executar tal tarefa. Não existe uma categoria específica para deficientes físicos dentro dos aplicativos. A bicicleta era a opção mais próxima de sua realidade. Apesar de não poder usá-la, foi nela que ele se cadastrou para fazer entregas em Paulínia, cidade do interior de São Paulo. É sobre duas rodas paralelas que ele se desloca. Caíque é cadeirante.
As dificuldades impostas pela pandemia fizeram com que Caíque, um dia velocista de destaque, passasse a fazer entregas. Isso porque sua mãe perdeu o emprego. Aos 57 anos, ela trabalhava como diarista em repúblicas próximas à Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Sem aulas presenciais, não havia mais o que limpar.
Caíque, então, decidiu fazer entregas. A cadeira de rodas, sua companheira de grandes conquistas, “115 medalhas”, segundo suas contas, passou a ter outra função.
“Um dia, um amigo esqueceu a ‘bag’ (apelido dado à mochila que os entregadores usam) aqui em casa”, relata. “Como já tinha tentado de tudo, sabia que do aplicativo não ouviria o ‘não'”. Bastou um simples cadastro. Ele sequer precisou omitir que era deficiente.
Nos últimos dois meses, Caíque já passou por quase tudo nas ruas de Paulínia com a bag nas costas. Chegou a percorrer 4,5 km em um único dia, enfrentou o ardido sol do verão do interior de São Paulo e as fortes chuvas que acompanham os fins de tarde da estação. Mas, não desanima. “O físico de atleta ainda ajuda”, diz.
Por 10 anos, Caíque se dedicou ao paratletismo. Ele nasceu com uma malformação rara e irreversível na coluna chamada mielomeningocele. É esse defeito congênito que provoca a ausência de movimentos nas pernas. Ele diz que a infância, apesar das circunstâncias, foi normal. “Meus pais sempre fizeram de tudo para que fosse como a das outras crianças”, diz, orgulhoso.
Caíque sempre foi muito ativo. Tanto que entrou cedo no esporte. Aos sete anos, já praticava basquete. Aos nove, rúgbi. Mais tarde, aos 12, ele havia se mudado de Campinas para Paulínia e iniciou no paratletismo, mais precisamente no arremesso de peso, disco e dardo. Logo largou. Isso porque durante sua primeira competição viu os velocistas em suas cadeiras de corrida e se apaixonou. “Foi amor à primeira vista”, conta.
No mesmo ano, foi campeão brasileiro juvenil. Três anos mais tarde, atingiu o índice adulto. Caíque, porém, não encontrou patrocinadores que o ajudassem com as despesas do esporte. “Mesmo sendo bolsista da seleção, era muito caro”, lamenta. A manutenção dos pneus da cadeira de rodas lhe custava R$ 500 por mês. Sua especialidade era a prova de 100 metros, onde obteve expressivos resultados em competições nacionais e internacionais organizadas pelo Comitê Paralímpico Brasileiro.
Sem conseguir arcar com as despesas, Caíque decidiu abandonar as competições. Seu foco até janeiro era exclusivamente os estudos. Ele cursa Educação Física e está perto de se formar. Seu sonho é voltar a ser atleta e, um dia, quem sabe, se tornar um grande treinador. “Quero dar o incentivo que eu não tive aos meus alunos”, diz.
Enquanto esse dia não chega, Caíque continua fazendo entregas. Há dias bons e dias ruins. Os piores são aqueles de muito sol ou de muita chuva. Ao Estadão, o iFood informou que “desenvolve recursos em seu aplicativo para pessoas com algum tipo de deficiência”. Pesquisa sobre acessibilidade realizada com os entregadores parceiros cadastrados revelou que cerca de 1% dos entrevistados possui algum tipo de deficiência, sendo a maioria auditiva.
A empresa diz que entende a existência de “uma demanda específica para entregadores com mobilidade reduzida” e reforça que trabalha “constantemente, como sempre esteve, em soluções inclusivas para os parceiros e vai analisar outras iniciativas para melhorar a experiência dos entregadores, sempre baseadas em escuta ativa e constante”.
No fim deste mês, Caíque fechou parceria com uma plataforma de entregas por aplicativo, que atua em cidades do interior. Ele deixará de ser entregador e terá a sua própria franquia, em Paulínia. Atualmente, ele passa por um processo de treinamento.
Por Agência Estado com informações de Sueli Moitinho
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