O assunto doação de órgãos é delicado. Mas não deixa de ser sempre um ato de amor, seja por quem faz esse gesto, em vida (nos casos de transplante de rim e medula óssea), ou quando a aprovação é feita pela família, se o ente querido partiu ou não tem mais condições de sair de um estado de morte cerebral, por exemplo.
Atualmente, no Distrito Federal, de acordo com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), 1.698 pessoas — entre pacientes adultos e pediátricos (a pasta não tem um recorte dos dados por idade) — aguardam pela oportunidade de receber órgãos, como coração, fígado, córnea ou rim (confira detalhes no gráfico). Em 2022, foram 749 pessoas atendidas. No ano seguinte, 839, e quase esse mesmo total em 2024: 825. Dados oficiais passados ao Correio mostram que, ano passado, no DF, houve 10 vezes mais cirurgias de transplante para adultos do que para crianças.
Ao Correio, médicos reforçam a necessidade de também conscientizar a sociedade sobre a importância da doação pediátrica. A doação de órgão de criança para criança precisa ser mais divulgada, segundo esses especialistas. Coordenadora clínica de Transplante Cardíaco Pediátrico do ICTDF, a médica Cristina Camargo Afiune afirma que a doação de órgãos envolvendo crianças é um grande tabu. “É muito comentado sobre o assunto na faixa etária dos adultos, mas falta fazer o mesmo para crianças”, avalia. “Em 2024, por exemplo, foi muito ruim para o DF e Entorno. Tivemos pouquíssimos doadores pediátricos, muito por causa da recusa dos familiares em fazer a doação”, lamenta.
Levantamento da Central Estadual de Transplantes (CET) do DF obtidos pelo Correio, reforça a fala dela: no ano passado, enquanto ocorreram 32 transplantes de coração em pacientes acima dos 18 anos, foram somente três procedimentos em menores de idade. De acordo com a diretora do CET, Gabriella Ribeiro, a grande dificuldade é conseguir o doador para uma criança. “Quando ocorre uma morte encefálica em uma criança, é mais complicado abordar um parente, em comparação com um adulto, por causa da dificuldade das famílias de assimilar a situação”, ressalta.
Luta pela vida
Muitos desses meninos e meninas que aguardam têm histórias de resiliência e de superação na dura batalha pela vida. Como Samuel Saldanha que, com apenas 11 meses de idade, viveu momentos de grande risco do morte. A mãe, Allana Saldanha, 25 anos, conta que tudo começou quando ele tinha 3 meses de vida, em Vilhena (Rondônia), cidade natal do bebê e dos pais. “Ele desenvolveu um quadro de conjuntivite, que se agravou para uma gripe. O levei ao hospital, pois ele estava com febre, bastante desconforto e acianótico (oxigenação insuficiente do sangue)”, recorda.
Allana diz que alguns exames foram realizados e descobriram que o bebê tinha cardiopatia congênita — anormalidade na função ou estrutura do coração. “Ele nasceu com a doença, que não foi diagnosticada durante a gravidez. Fiquei muito preocupada, pois tenho histórico familiar de cardiopatias e, a partir daquele momento, tinha a noção de que ele poderia precisar de um transplante”, afirma.
Segundo ela, o quadro foi piorando, com o passar do tempo. “Nossa jornada de transplante começou quando chegamos ao Hospital da Criança de Brasília (HCB), em novembro do ano passado. Desde então, Samuel pegou uma infecção generalizada no sangue, que afetou vários órgãos. Ele chegou a ficar mais de um mês intubado”, comenta. “Hoje, a força do coração é muito baixa, na casa dos 13%. Meu pequeno Samuel precisa muito de um coração, só o transplante pode salvar a vida do meu filho”, desabafa a mãe.
“Estamos vivendo um dia de cada vez, aproveitando cada segundo, até porque não sabemos o que pode acontecer no dia de amanhã. O que mais conforta é ver que ele consegue sorrir, mesmo com tudo o que passou e continua passando”, acrescenta Allana.
Apesar de viver momentos de dor, ela conta que criou forças para tentar conscientizar as pessoas sobre a importância da doação de órgãos para crianças e adolescentes. “Criei camisetas e uma página nas redes sociais, para falar sobre a história do meu filho e conscientizar a população sobre essa situação em relação ao outros pacientes, também”, ressalta. “Infelizmente, é na dor que a gente salva vidas. É muito triste. Quero muito incentivar as pessoas a serem doadoras, para que nenhuma mãe tenha que sofrer desse jeito”, afirma.
Vitória
O militar da Marinha Alexandre de Jesus da Silva, 44, pai da Ana Júlia, de apenas 1 ano e 7 meses, diz ao Correio como foi a luta para salvar a filha. Morador do Guará, ele conta que o drama teve início assim que ela veio ao mundo. “Minha filha nasceu em 12 junho de 2023 e, no dia seguinte, passou mal e foi parar em uma UTI. Alguns exames foram feitos e descobriram que as válvulas do coração estavam muito fechadas. Ela tomou medicamentos, melhorou e teve alta”, recorda.
Só que, alguns dias depois, a bebê tornou a ficar instável. “Quando voltamos ao hospital, descobriram que ela tinha líquido no coração. No fim de 2023, ela pegou covid-19, o que agravou a situação, fazendo com que voltasse a ficar internada, pois o coração estava crescendo. Desde dezembro daquele ano, minha filha passou a ficar somente no hospital”, afirma Silva.
Em 11 de janeiro de 2024, o pai conta que Ana Júlia entrou na fila do transplante. “Foi um período bem desgastante, pois estavam somente eu e minha esposa revezando no hospital”, comenta. “Para quem está na fila de transplante, a espera é bem angustiante, ainda mais por ser um órgão tão vital. Não sabia se ela ia acordar no dia seguinte. Eu mesmo, quando estava no hospital, acordava de hora em hora, achando que tinha acontecido alguma coisa”, lembra. Mas a história teve final feliz.
Exatamente depois de um ano de ser candidatar ao transplante, veio a boa notícia: um coração compatível e saudável. “No dia da cirurgia, foi uma felicidade tremenda quando o helicóptero pousou no hospital com o coraçãozinho da minha filha. Todos choraram e pessoas que nunca tinha visto vieram me abraçar e dar parabéns”, afirma o militar.
De acordo com ele, a expectativa é grande para que a pequena Ana Júlia vá para casa (ainda sem previsão). “Todos estão esperando para recebê-la. Para mim, 11 de janeiro vai ficar marcado para sempre. Minha filha vai ter dois aniversários, a partir de agora”, brinca. “É preciso conscientizar sobre a importância da doação de órgãos para crianças, porque não são só os adultos que necessitam de transplantes”, destaca.
Tabu
Elber Rocha, nefrologista e coordenador de transplante de órgãos do Hospital Santa Lúcia, ressalta que as dificuldades com essa faixa etária específica de pacientes, envolvem alguns aspectos. “Uma deles é a questão anatômica. A gente não tem uma disponibilidade de doadores pediátricos, assim como temos para adultos e isso traz uma dificuldade adicional. Muitas vezes, crianças acabam tendo que receber órgãos de doadores adultos, sobretudo crianças maiores”, pontua.
Outro aspecto, segundo o especialista, é assegurar o equilíbrio psicológico das crianças que aguardam um órgão. “Naturalmente, o paciente transplantado requer uma abordagem multidisciplinar que envolve um suporte psicológico. Só que, na criança e no adolescente, esse tipo de suporte é vital, muito importante para que haja sucesso no transplante, pensando em longo prazo”, opina Rocha.
Gabriella Ribeiro, da Central de Transplantes, acrescenta que a entidade promove o aprimoramento dos profissionais que prestam assistência, além das Comissões Intra-hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes. “A nossa equipe está preparada para abordar as famílias independentemente da idade”, garante.
Como doar?
Para ser doador, não é necessário deixar nada por escrito, basta comunicar sua família do desejo da doação. Há dois tipos de doadores:
– Doador vivo: Qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que não prejudique a sua própria saúde. Ela pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores. Não parentes, só com autorização judicial;
– Doador falecido: São vítimas de lesões cerebrais irreversíveis, com morte encefálica comprovada pela realização de exames clínicos e de imagem. Nesse caso, é necessário conversar com a família sobre o desejo em ser um doador. No Brasil, a doação só ocorre após a autorização da família.
Fonte: SES-DF
Por Arthur de Souza do Correio Braziliense
Foto: Arquivo pessoal / Reprodução Correio Braziliense