A média de ocorrências de violência contra crianças e adolescentes recebidas, diariamente, pela Polícia Civil do Distrito Federal chegou a 21. Os dados, que foram levantados pela Divisão de Análise Técnica e Estatística (Date), através do Sistema Polaris/PCDF, no dia 23 de setembro de 2021, revelam a marca de quase um caso por hora. A amostra é composta por ocorrências policiais criminais consumadas, cujo fato ocorreu de janeiro a agosto deste ano, com vítimas de 0 a 17 anos de idade.
Apenas nos primeiros 8 meses de 2021, foram registradas 5.057 ocorrências, com média mensal de 632 registros. No documento, é destacado que foram desconsiderados os casos duplicados das Delegacias da Criança e do Adolescente (DCAs) e selecionado como estado do endereço do fato o DF. No período analisado, os meios de violência mais empregados registrados contra esse público foram ameaça (17%), agressão moral (11%), violência física (8%), subtração (5%) e violência sexual (4%).
Conforme traz Simone Maria Pereira da Silva, delegada-chefe da DPCA, o local recebe, com mais frequência, os casos de violência sexual. “Sem sombra de dúvidas, essas são as denúncias que mais chegam a essa delegacia”, afirma a dirigente. A delegada pontua ainda que, apesar de os números já serem consideravelmente altos, as chances de estes serem ainda maiores existem. Isto porque, devido a pandemia e o isolamento imposto por ela, muitos registros deixaram de serem feitos. “Durante a pandemia, o registro das ocorrências diminuiu, mas, com certeza, os casos aumentaram. Muitas crianças e adolescentes ficaram isolados, sem ir para as escolas, sem convívio social e, então, muitas vezes, essa denúncia não aconteceu”, acredita.
A delegada explica que, ao deixar de frequentar ambientes de convívio social como escolas, e de terem contato com outros grupos de pessoas, as crianças deixam de perceber que estão passando por algum tipo de violência. “Nesses casos, procuramos interromper esse ciclo violento em conjunto com nossos parceiros, órgãos de proteção, conselhos tutelares, hospitais para onde essas crianças são encaminhadas e investigamos, colhemos depoimentos, para encaminharmos para a justiça”. Os adolescentes de 12 a 15, conforme é apresentando no documento, são os mais vitimados em crimes praticados pela internet e estupro de vulnerável.
Na avaliação de Ciomara Schneider, psicóloga infantil e professora do CEUB, essas situações trazem inúmeras consequências para as vítimas. “Uma criança que sofre violência, por exemplo doméstica, passa a agir de forma muito insegura, desenvolve medo, dificuldade de se expressar e adquire um estado regressivo, ou seja, passa a agir de maneira infantil”, esclarece a profissional. Esses, de acordo com ela, são os efeitos imediatos. Com o passar do tempo, contudo, a médio e longo prazo, esse indivíduo pode se tornar alguém agressivo, com seus pares ou com outras crianças. “Ela pode crescer acreditando que também tem o direito de agredir, machucar o outro”, acrescenta a psicóloga.
Além do comportamento refletido de agressão, muitas pessoas crescem com dificuldades de socialização, como expressar sentimentos e fazer amizades. “Ela não se sente uma pessoa validada para relacionamentos, uma vez que recebeu agressividade e violência de quem a cercava. O papel do adulto é fazê-la se sentir confiante, segura e apoiada. Quando ela não tem isso, ela não desenvolve essas habilidades”, conclui.
A 6a DP (5%), 27a DP (5%), 33a DP (5%), 26a DP (4%), DPCA (4%), 30a DP (4%) e DEAM II (4%) apresentaram os maiores percentuais de ocorrências de crimes praticados contra crianças e adolescentes em sua área de apuração, somando juntas 32% do total.
Outros resultados
De acordo com projeções do governo local, em 2021, estima-se que cerca de 700 mil crianças e adolescentes vivem no DF e, como salienta a própria pesquisa da Date, “neste cenário de pandemia, o olhar precisa ser ainda mais atento para a proteção desse público que muitas vezes é vitimado no interior das residências por seus próprios familiares”. E é justamente este cenário que a apuração revela. No período em questão, a via pública (30%) e a residência (30%) foram os locais de maior incidência criminal. Se tratando da faixa etária dessas vítimas, as crianças (6 a 11) são as principais padecentes de maus tratos, e a maioria (55%), são do sexo feminino.
Ainda segundo a verificação, 22 RAs apresentaram incidências criminais contra crianças e adolescentes acima de 1%. Dentre essas, Ceilândia (15%), Samambaia (8%), Taguatinga (7%) e Planaltina (6%) lideram o ranking.
Destacam-se também o Sol Nascente/ Pôr do Sol, região desmembrada da Ceilândia em 2019 e apresenta 3,40% do total de casos. Também foi possível analisar que os jovens (16 a 17) são as principais vítimas de roubo a transeunte, ameaça, injúria, Lei Maria da Penha, lesão corporal, vias de fato, ato infracional praticado por criança/adolescente e furto de celular.
Oscilação
A violência praticada contra crianças e adolescentes é, infelizmente, uma realidade no Brasil. A visibilidade e a proteção estatal, contudo, só foram efetivadas com a Constituição Federal de 1988 e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 (em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança).
O que foi possível notar a partir da análise dos números, é que no DF, o contexto ainda é recorrente, e não apresenta períodos muito longos de baixa. De 2016 a 2020, por exemplo, foram registradas 71.876 ocorrências criminais contra crianças e adolescentes na capital federal. Houve, felizmente, uma queda no número de registros em todo o período analisado, principalmente no comparativo de 2019 e 2020 com declive de 45,18%.
No comparativo entre janeiro a agosto de 2021 e 2020, todavia, a diminuição permaneceu, trazendo uma queda de 10% no número total de registros no ano corrente. Contudo, no comparativo mensal, os meses de abril a agosto de 2021 apresentaram aumento no número de registros criminais, contrariando a tendência de queda do primeiro trimestre de 2021 e da série histórica.
Sinais de violência
Ainda de acordo com a professora do CEUB, os sinais, além dos físicos, para identificar uma vítima de violência, não são demonstrados pela fala. “Ela tem medo de contar. Então ela vai se retrair, parar de sorrir, perder o prazer em brincar e interagir”, desenvolve. É preciso, como ela destaca, tomar muito cuidado pois, ambos tipos de violência (física ou psicológica), são extremamente nocivos e trazem as mesmas sequelas. Tratam-se de crianças que não se sentem autorizadas a brincar com os colegas, a fazer novas amizades ou até ir bem nos estudos. “Essa vítima pode desenvolver. dificuldade de aprendizagem e problemas como déficit de atenção. Ela cria um mundo à parte, só dela, de fantasias, onde não há sofrimento”, diz Ciomara. É nesse universo que, muitas vezes, ela está dentro enquanto está na escola.
Por fim, a psicóloga elucida a importância do apoio e do amparo familiar, assim como a observação e análise diária daquela criança, para que os primeiros sinais sejam percebidos e o ciclo seja interrompido o mais cedo possível. “Isso pode restaurar o seu estado emocional, mas se ela continua ali, e ninguém a socorre, ela pode ter sintomas mais severos”, finaliza.
Por Mayara Dias do Jornal de Brasília com informações de Sueli Moitinho
Foto: Jornal de Brasília